sábado, 23 de novembro de 2013

A CAIXA




Eu te amo, Pedro não disse. Não era disso, era um homem duro. Não se derramava, era um homem seco. Além do mais não diria nada que não tivesse certeza: amor é coisa séria, não se distribui que nem bala, muito menos que nem as de chumbo.
Ou melhor, Pedro até disse eu te amo, mas bem baixinho, quase um murmúrio, olhando para a porta que se fechava enquanto o amigo ia embora. Pois é, era assim que ele costumava se referir a Saulo: meu amigo. Mas para quem observasse bem os dois juntos, o amor deles não era segredo. Já o que havia dentro da caixa, era.
Saulo chegou a perguntar a Pedro: o que tem nesta caixa?
Nada, é segredo, Pedro disse. E Saulo saiu sem saber o que havia ali dentro. Em compensação, sabia de muitas outras coisas. Sabia, por exemplo, que Pedro de vez em quando se fingia de manifestante pra fotografar os mais radicais. E que, às vezes, se fantasiava de radical pra atiçar a polícia e justificar a violência do contra-ataque.
Mas o que tinha na caixa, afinal? Bem, o conteúdo estaria em todos os jornais do dia seguinte, fotografada e filmada nas mãos de Pedro, que se diria manifestante pacífico e bradaria aos jornalistas que a caixa em suas mãos, cheia de coquetéis molotov, era dos baderneiros. Dos baderneiros! Cá entre nós, Pedro já dizia o que havia dentro da caixa antes mesmo de abri-la, mas a cena foi rápida, poucos perceberam o furo.
Bem, agora que o conteúdo da caixa não é mais um mistério, vamos voltar ao que interessa?
Vamos lá para o dia anterior, bem antes da reportagem que acabamos de narrar. Vamos entrar no meio da manifestação que acontecia e ir lá para a frente, junto daqueles rapazes de preto, com rostos cobertos de panos e máscaras, enfrentando a polícia. Vamos, observar os Black Blocs ateando fogo nas latas de lixo para impedir o avanço do batalhão, chutando bombas de volta aos canos imprecisos , amparando na carne as balas perdidas de borracha. Vamos avançar através da fumaça, sem lacrimejar, respirando pimenta, protegidos pelo pano dessa história que aos poucos se revela. E chegar perto daquele Black Bloc imobilizado por um policial, um rapaz que está sendo acusado de ser o dono da tal caixa de coquetéis molotov.
Vamos virar o rosto e reparar em Pedro bem aqui do nosso lado, descobrindo junto com a gente que esse tal rapaz com o rosto esmagado contra o chão é Saulo. Vamos acompanhar os segundos de angústia. O dilema de não saber se mantém o disfarce, respeita a estratégia a ele confiada, ou se protege o amigo, levianamente acusado. Além do mais, se dissesse que a caixa era dele, como explicar aos colegas, como fugir do achincalhe profissional - e moral - que certamente se seguiria? Bem, ao que parece Pedro mandou tudo às favas: empurrou os policiais, levantou Saulo do chão e deu um longo beijo em sua boca logo depois de confessar: A caixa é minha.
Para Saulo, que agora sorri, é como se Pedro tivesse confessado outra coisa. É como se tivesse escutado, finalmente: eu te amo.


(Marcos Bassini)

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